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Por Edson Ferreira

Quando da escrita dessas palavras, com cinquenta anos e vinte de carreira.

18/12/2023 às 12:19
 

Sou Edson Ferreira, ator e cineasta. Quando da escrita dessas palavras, com cinquenta anos e vinte de carreira.

 

Foi com grande satisfação que recebi o convite para discorrer sobre essa nova etapa do Elenco Negro. Fazer parte, em 2021, já me trouxe um sentimento de pertença, um reencontro afetuoso, ainda que muitos dos envolvidos eu não conhecesse pessoalmente. No entanto, havia atravessamentos muito mais fortes, intrínsecos, subjetivos, que rapidamente me fizeram acreditar que estava entre os meus pares: de um lado, o panorama artístico; de outro, o caráter étnico-racial. Esses dois vieses, que perfazem toda a minha trajetória pessoal e profissional, estariam fortemente entrelaçados e mutuamente fortalecidos.

Quando um projeto como esse chega para nós, artistas pretos, é como se nossos ancestrais nos falassem diretamente. Como se griôs nos indicassem um caminho. Desde a proposta inicial de se produzir um monólogo - que já na raiz buscava um diferencial ao fugir do padrão estético consolidado há décadas - até o apadrinhamento e consultoria,  o sentimento que sempre crescia era o de estarmos em casa.  De fato estávamos, pois ambas as atividades foram realizadas remotamente, devido à pandemia que se  fazia presente. Mas não me refiro ao espaço físico, mas à generosidade trazida por Fabrício Boliveira, Helena Bielinski, Mônica Nêga e tantos outros e outras da equipe envolvida. Houve troca mútua, o que acredito ser o mais importante.

 
Crédito: Foto: Thiago Lins
 

Emprestar corpo, voz, alma  a um outro ser, a uma persona que nasce internamente, nos faz pensar e repensar o mundo, refletir gestos, símbolos, valores, histórias. Apesar da cultura ser continuamente descartada por agentes públicos e privados há séculos, nosso ofício tão nobre resiste graças ao apelo interno que carregamos por expressão. É o que o mantém vivo. É o que nos mantêm vivos. É o que nos permite viver em uma eterna corda bamba sem esmorecer.

 

Em cada um dos diversos segmentos de trabalho - teatro, cinema, publicidade, TV e web - os desafios impostos são de ordem diferente. Atores pretos precisam lidar com a dura sina de criação em um palco e produzir histórias cujo protagonismo fuja dos muitos estereótipos   impostos historicamente. É um alento que se consolida ao poder produzir e dirigir com a liberdade própria do fazer teatral, a duras penas. Já quando diante de uma tela, sobretudo a  do cinema e da TV, muitas vezes se fica refém daquele mesmo estereótipo que tanto se desejou fugir: a do bandido, do traficante, do empregado subalternizado e sem voz. Mas, para muitos profissionais, é o lugar da remuneração mais robusta e de uma talvez ânsia pela fama, ainda que efêmera. Fama essa que ganha contornos quase que imediatos em alguns poucos segundos de conteúdo em rede social: uma dancinha, uma imitação, uma "influência". Embora muitas vezes longe do que se deseja ou se entenda por arte de atuar, é na internet que muitos se lançam para não morrerem na praia do mercado cruelmente seletivo, injusto e desigual. Porém, mesmo em espaços ditos democráticos como o da web, sabemos bem os pesos e as medidas diferenciados quando o assunto é o horizonte racial. Há racismo recreativo e estrutural. As rupturas que artistas pretas e pretos querem propor são tratados de modos díspares.

 
 

De fato, tudo o que se preconiza como instável para atores, torna-se elevado à enésima potência na medida da melanina mais acentuada. Produzir-se é uma tentativa de saída para um mundo que tenta nos padronizar, rotular e encaixotar em perfis que não valorizam nosso olhar. Não raro, precisamos contar nossas vitórias e derrotas sendo porta-vozes de brancos e brancas que insistem em nos dizer como falar, agir, ser e estar em cena. O pacto narcísico da branquitude permanece vivo e incômodo, na medida em que o fetiche por contarem nossas trajetórias por um ponto de vista eurocêntrico e demasiadamente ocidentalizado parece não dar trégua.

 

Mas, fico imensamente feliz que iniciativas como a do Elenco Negro surgem para dar luz, aquecer o coração e permitir vislumbrar um afrofuturismo aqui e agora, impregnado de afeto, sinceridade e desejo de compartilhamento de ideias e sonhos. O Elenco Negro se torna um pequeno e merecido aquilombamento. E desejo que assim permaneça, cresça e se perpetue.

 

 

 

 

 

Edson Ferreira

Edson Ferreira é ator, cineasta e roteirista. Ao longo de vinte anos de carreira, realizou diversos projetos premiados em importantes festivais e exibidos em serviços de streaming. Dirigiu os longas Areia (2024), A Serena Onda que o Mar me Trouxe (2023) e Entreturnos (2014), coproduzido pelo Canal Brasil, além de curtas, séries e videoclipes. Foi o primeiro negro a dirigir um longa-metragem de ficção no Espírito Santo, estado onde reside. Como ator, seus principais trabalhos são no longa Areia (2024), na série Cidinha dá Jeito (2019) e no curta A Mesa no Deserto (2017). É fundador da Filmes da Ilha Produções e membro da Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais.